Dez horas da noite e o som de uma ambulância me retira por alguns momentos da minha alienação rotineira diante do streaming, não sei o que seria de mim sem séries e filmes durante a pandemia, que me transportam para um mundo diverso desse em que vivo, mas o som da ambulância me leva de volta para esse mundo, na minha imaginação me coloco no lugar de alguém com Covid 19, sem ar e com muito medo de morrer, perdido em minhas crenças de que tudo esta sob controle, imagino o desespero de deixar as pessoas que amo.
Isso aconteceu uma semana antes de pegar de fato a Covid, hoje com quase duas semanas de isolamento do inicio dos sintomas, passando pela angústia de não saber como seria, de ter passado para a minha companheira e para o meu filho, que pegaram de mim. Tenho agradecido muito pois todos nós estamos tendo sintomas leves. Me dou o direito de refletir um pouco sobre essa doença e tento buscar possíveis significados onde ainda existem muitos buracos de sentido.
Um aspecto que me impressiona é o do contato que temos que evitar, tão necessário para a vida, desde o colo seguro da mãe que nos embala, contato afetuoso que nos fundamenta como humanos, um abraço que transmite afeto e expressa o quanto aquele sentimento é importante, nos seguramos em um abraço após uma emoção avassaladora, nos apoiamos no toque, um toque sutil que acolhe. Podemos dizer que o contato é um meio de dar e receber afeto.
E nesse momento o isolamento nos priva desse afeto, tão necessário para nos sentirmos parte dessa grande comunidade humana pois só nos sentimos parte daquilo que nos afeta, que nos permeia como seres humanos, compaixão e empatia tem em comum na origem das duas palavras o substantivo pathos que significa sofrer, e quem consegue sofrer/se afetar junto ou se colocar no lugar de quem sofre/se afeta sente compaixão e empatia respectivamente.
Essa capacidade de ter empatia se afastando vai na direção contraria do contato próximo que estamos acostumados. Essa atitude de afastamento pode frear o vírus, uma ironia necessária que precisamos conter nossa expressão de afeto e ao conter não damos nem recebemos mais no contato direto, nos desconectamos desse sentimento de pertencer a uma família, a uma equipe de trabalho, a uma torcida de futebol, a uma comunidade religiosa e tantas outras situações.
Sera que a desconexão com o todo, com os amigos, com a família nos torna indivíduos conscientes da nossa importância nessa comunidade? Se não tenho o alimento da relação, do espelhamento de quem sou, sera que consigo SER sem ninguém por perto? Precisamos descobrir rápido!
Precisamos refletir se toleramos não pertencer para proteger, se nossa compaixão é maior que nossa necessidade de pertencer. Muitas pessoas fundamentam a própria sensação de segurança, o sentido da existência na relação com o mundo e com os outros. Se não sinto que pertenço, não existo. Não precisamos ir longe para entender isso, toda vaidade do EGO se fundamenta nessa necessidade de sempre ter alguém espelhando nossa importância, nos dizendo que somos belos, poderosos e felizes, que temos seguidores e curtidas. Talvez por isso seja tão intolerável a ideia do isolamento. Para que consigamos sair dessa crise vamos precisar de mais compaixão e empatia e menos de vaidade e egoismo. E nossa sociedade caminha para o culto ao fútil e ao consumo desnecessário.
Nossas trocas de contato estão nos colocando em risco, trocas que sustentam nosso sentido de existir. O sintoma fatal da Covid impede que troquemos o ar, tira nossa capacidade de respirar, embota o paladar e o olfato… nos retira do mundo, tirando nossos sentidos e nossa possibilidade de estar no mundo. Essas feridas das trocas não podem ficar sem significado e sentido. Precisamos olhar para a natureza e para nossa própria natureza onde existem diversas trocas, na economia pensando de forma mais sustentável e não colocando o Ter acima do Ser, na subjetividade entendendo como cada um reage diante da violência do mundo, como cada troca se realiza e se ela é boa para todos . Precisamos sair dessa crise fazendo mudanças internas e externas, e isso é urgente, mudar pode significar uma morte simbólica, morrer uma forma de ser para renascer outra. As trocas de qualidade nos fazem mudar, precisamos sair da certeza vazia de trocas e abraçar uma incerteza humilde que aprende e evolui.
Comentários